Outro dia, eu conversava com uma amiga sobre o tema deste blog. (Ela não sabe da minha identidade secreta, é claro, embora eu ache que desconfia: um dia, deixei a porta do guarda-roupa entreaberta e ela pode ter visto uma ponta da minha máscara.)
Ela é bem-intencionada, embora ainda ingênua e iludida. Concordando com quase tudo o que meus cúmplices e eu dizemos aqui, mesmo assim pretende votar em vários candidatos, de deputado a presidente. Ou presidenta, melhor dizendo, apesar de que a recente adesão de Clarissa Garotinho e da tropa de choque juvenil peemedebista à candidatura HH possa balançá-la. O que é triste, porque o voto nulo consciente não é conjuntural, é fruto da compreensão de que o sistema está podre, fede mais do que canapé de coquetel de conferência nacional depois de duas semanas debaixo do tapete.
Enfim, ela buscava líderes comunitários autênticos, gente de sangue bom, desvinculados da política tradicional, para votar nas eleições proporcionais. Estava lá, de microscópio na mão, olhando as listas partidárias, em busca deste ser surpreendente, merecedor de voto.
Deixei de lado o circunstancial - quem é que é desvinculado da política tradicional e ainda assim sai candidato? - e parti para o essencial:
- Vamos supor que você encontre esse candidato puro. Você vai elegê-lo para quê? Para que ele ganhe um status (ainda mais) diferente da base que deseja representar? Para que aprenda as manhas e mumunhas da ação parlamentar, o valor do conchavo, da espinha dobrada, do toma-lá-dá-cá? Para que se acostume às benesses da vida no poder e faça de sua reeleição em quatro anos a meta final de sua vida?
Minha amiga não se deu por vencida. Explicou que o objetivo era escolher um bom candidato
que não fosse eleito, eliminando assim o risco de que ele fosse corrompido pelo exercício do poder. Feliz por entender que estávamos de acordo quanto a um ponto principal, isto é, que o exercício do poder corrompe, tentei decifrar essa postura
underdog radical (lembrei-me das aulas de ciência política, do saudoso prof. Pimba): escolher quem vai perder.
- É para valorizar a candidatura - explicou ela. - Você sabia que os extratos de urna são valorizadíssimos? Minha liderança comunitária autêntica vai ficar feliz de ter tido um voto numa zona eleitoral de elite, longe de sua moradia. Mesmo não se elegendo.
Achei bizarro. O camarada tem um trabalho em movimento social, consegue fazer alguma coisa com as pessoas em volta dele, recebe o epíteto de liderança. Mas o que o valoriza é um voto numa área burguesa. Será que esse raciocínio não reforça a idéia de que a política eleitoral é a
verdadeira política, que o voto é o único indicador que mostra quem tem o direito de fazer política? (E, ainda mais, que uma pequeno-burguesa vale mais que mil proletras?)
- Você está estimulando que se pense que a eleição é a política que importa, que você trabalha em movimento social, sindicato, seja o que for, como degrau para um dia sair a deputado. Que o que vale é o processo eleitoral e o resto é igual bosta de cabrito.
A citação escatolo-zoológica foi proposital, para valorizar também as lideranças advindas do meio rural.
- Não! - respondeu ela, escandalizada. - Não estou estimulando não. Ele já pensa isso desde a hora em que se candidata!
E ela vai corroborar isso... Se a liderança comunitária autêntica se ferrasse bonito, talvez se desencantasse com a política institucional e voltasse a alocar suas escassas energias em algo potencialmente mais produtivo. Mas assim não. O que minha amiga ainda não deglutiu é que
cada voto dado legitima mais o sistema e
cada voto recebido insere mais (quem o recebe)
no sistema. Há quem queira manter o sistema - são os nossos adversários. Há quem queira reformar o sistema - iludidos, alguns; cooptados, outros. Mas se é para acabar com esse sistema, então não há meio termo.
Não sou fã de lideranças comunitárias - cada um dos dois termos me dá calafrios. Mas é necessário preservar toda a semente de transformação presente no mundo social. Se há um candidato bom, vamos cuidar pra não corrompê-lo com a vitória eleitoral, com a esperança de vitória eleitoral, com a mosca azul da busca do mandato. Eu sei que meu voto corrompe: não vou usá-lo contra quem eu respeito.